I
Encontrei-te naquele distante comboio-de-infância...
Recordas?
O teu cabelo curto, coberto por um boné de pala, a roupa diferente dos demais, transformavam-te no companheiro de brincadeira ideal.
-Dominó! Ganhei!... -gritavas saboreando exuberantemente o doce prazer da vitória. E explicavas modestamente:
-Para se ganhar é preciso juntar as frutas certas nunca esquecendo as repetidas...
-Meninos... -gritava a minha mãe. Não, creio que era a tua.
-Portem-se bem!
Esta foi talvez a mais bela viagem da minha vida.
Porquê?!...
Porque era uma criança, e essencialmente porque tu lá estavas.
II
Embarcamos então no maravilhoso barco-da-adolescência…
Recordas?
No teu cabelo começaram a surgir as primeiras ondas, em teu rosto e sobretudo no corpo, operavam-se transformações que geravam profundas controvérsias no meu seio…
Gostava de ti… sim, tu devias ser o que eles chamavam “rapariga”, aquelas fracalhotes que nem uma corrida aguentam e choram por tudo e por nada…
Continuamos, no entanto, sempre no mesmo barco, distantes… mas tão perto um do outro…
No teu camarote, eras sem dúvida a mais bonita -sim, porque já notava essas coisas!... enquanto, aqui pela coberta, me tornava o mais forte, o mais inteligente…
A determinada altura finalmente encontramo-nos algures num dos compartimentos da proa…
Nesse momento o barco parou, o tempo parou…
Só tu te movimentavas na minha direção, como se flutuasses… e observava-te minuciosamente… como mudaras desde aquele primeiro dia de viagem… estavas tão diferente…
III
“Amei-te, amo-te, amar-te-ei sempre…” palavras irromperam dos teus lábios quebrando o silêncio e a inércia do momento…
De início não entendia absolutamente nada. Já tinha visto na televisão pessoas dizerem palavras daquelas e até beijarem-se na boca, mas… será que tu também me irias beijar?
Uma estranha sensação de medo/desejo percorreu o meu corpo ao ver o teu rosto bonito mover-se para o meu… (fechas-te os olhos que eu bem vi!)…
-Meninos! -gritou a tua mãe, ou seria a minha? – Portem-se bem!
IV
Surgiu então a tempestade e o naufrágio tornou-se inevitável…
O maravilhoso barco em que viajávamos destroçara-se nos recifes daquela praia que sonháramos…
A partir daí só sofri na minha ilha deserta, onde acabaria por ficar…
Ainda te enviei uma mensagem naquela garrafa que encontrei caída na areia, mas o tempo passava dolorosamente indiferente…
Aquele rapazinho que tantas aventuras vivera contigo, já não era o mesmo… crescera imenso… os seus músculos tornaram-se mais fortes, os ombros mais largos… transformara-se num homenzinho…
E tu como estarias?
Decerto usando cabelos longos, alguma maquilhagem para realçar o teu rosto lindo… um vestido atrevido realçando as linhas de mulher feita, sensual…
V
O voo no avião do futuro acabara de rasgar os céus quebrando todas as barreiras do sonho…
Será que aquela mulher de vestido preto ainda existia? Será que serias realmente tu?
-Jogamos outra partida de dominó -ainda sugeriste.
-Mas não te esqueças que para ganhar é preciso juntar as frutas certas!
-Eu sei, tolinha, não precisas de me dizer nada. Eu sei como é.
-Bem, recomecemos então…
Recordo perfeitamente o leve sorriso que naquele momento se voltou a desenhar no teu rosto…
Recordas?
-Meninos, portem-se bem! -alguém gritou de dentro. Creio que era o teu pai, ou talvez o meu…
Depois destas não mais sei o que aconteceu…
De qualquer modo, se tiver oportunidade, prometo que um dia te contarei como terminou a viagem.
O final.
Sabes, é que não consigo inventar!
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